O Princípio da Impenetrabilidade

Tic…

Lenice acorda com o despertador tocando às 7h.

Prepara o café do marido e da filha como de costume e sai para trabalhar assim que os dois levantam.

Se sente feliz.

Tac…

Armando encara o relógio de parede do escritório até que os ponteiros indiquem 13h06.

Sai metodicamente no mesmo horário para almoçar, não quer encontrar ninguém.

Está de saco cheio.

Tic…

Lenice entra na reunião às 17h21 e apresente seu novo projeto de marketing que vai fazer as ações da companhia dispararem. Net Sales, Market Share, Gross Profit… não esquece de nenhum detalhe.

Os diretores elogiam.

Se sente satisfeita.

Tac…

O estacionamento do prédio já está fechando. O manobrista do turno da noite já ligou três vezes avisando Armando que as atividades encerram às 20h.

Ele está sozinho no andar revisando um cálculo da alíquota 15 do imposto que vai entrar no projeto.

Está exausto

Tic…

O despertador grita nos ouvidos de Lenice às 6h30.

Ela tem consulta às 8h no psicólogo.

Se sente ansiosa.

Tac…

Armando está preso no trânsito às 7h39 da manhã.

Vai se atrasar para a consulta marcada às 8h no psicólogo.

Está frustrado.

Tic…

Lenice chega a tempo.

Tac…

Armando também.

Tic…

Doutor Osvaldo consola Lenice.

Tac…

O psicólogo acalma Armando.

Tic…

O médico receita diazepam à Lenice.

Tac…

Pede à Armando que tome diazepam.

Tic…

Lenice reluta em tomar as pílulas

Tac…

Armando também.

Tic…

Lenice engole a primeira drágea com dificuldade.

Tac…

Armando toma a segunda num único gole d’ádua.

Tic…

Lenice se sente aliviada.

Tac…

Armando ainda mais.

 

Os dois vão embora do consultório do Dr Osvaldo. Sem tic. Sem Tac.

Encontraram Yoko, a quem não viam faz tempo.

Fruir

Os olhos traem o que a boca fala.

Cala.

Conto tudo sobre mim, mas não revelo o que há por dentro, no fundo.

Profundo.

Não procuro a luz no fim do túnel, nem em lugar nenhum.

A imposição da famigerada felicidade cega.

Desassossega.

O eterno embate entre o não contentar e o não ser ingrato.

Tato.

O acalanto, o desalento a ação e a contradição.

Me desfaço e me aceito.

Acolho o não, o rir, o despir.

O fim.

 

Indesejado

Num sopro do vento você apareceu
que triste fui eu
pensar que você não ficaria
ah como eu queria!

quanto mais preenchia o armario
mais minha vida se esvaía
e eu pedia
quando você saía
sua partida sem volta

você voltava
revolta

um dia vá de uma vez
e vê se não volta mais
leve teus copos e cintos
sinto muito, mas nunca gostei de você.

 

Medos privados em lugares públicos

Ela passava por aquele local diariamente. Sempre apressada, sempre distante, nunca tinha olhado ao redor.

Um dia qualquer, sem os fones de ouvido que a transportava para outra dimensão, reparou no parque do lugar. O sol iluminava uma clareira onde as pessoas faziam pique-nique desapressadas, havia uma ponte com as grades recém pintadas de vermelho para chegar até aquele jardim, a visão naquele dia a encantou.

Tirou o celular do bolso, selecionou o modo câmera, focalizou a cena que queria registrar. Alguém andando na mesma rua que ela a olhou. A garota entrou em choque, sentiu o estomago revirar enquanto olhares curiosos pousavam sobre ela. Não clicou. Enfiou o celular rapidamente no bolso e saiu andando na maior velocidade que suas pernas e pés permitiram-na alcançar.

Entrou no metro. Se sentiu aliviada. Odiava fazer certas coisas aos olhos nus do mundo.

Gostava de escrever e fotografar. Tinha várias inspirações enquanto estava andando desconectada do cotidiano com seus fones de ouvido. Perdia todas eles por não anotar os pensamentos em público.

Outro dia qualquer revirando suas conjecturas, conseguiu esclarecer pra si mesma alguns sentimentos. Tirou o caderno que levava na bolsa e começou a anotar, se transportar para o papel tornava as coisas difíceis, de certa forma,  mais palpáveis.

Alguém sentou do seu lado no ônibus. Tentou ignorar a presença e continuou escrevendo. Tentaram espiar os escritos por cima dos ombros. Pânico. A sensação de desespero foi próxima da asma. Se sentiu exposta, desprotegida, vulnerável.

Fechou o caderno e enfiou na bolsa sem se preocupar se estava amassando as páginas. Ufa, pensou. A sensação de alívio foi gradualmente substituindo o formigamento que sentia no corpo depois da rápida espreitada alheia. Reparou que o próximo ponto era onde deveria descer. Saiu do transporte público. Suspirou.

Dali em diante, diversas ideias ficaram ocultas de si dentro do seu cérebro.

 

* título surrupiado do filme homônimo.

Pelos olhos de Maisie (e os meus também)

Quando eu era adolescente ia ao cinema sozinha de vez em quando, todo mundo achava estranho, mas eu gostava. A única vez em que me incomodou foi quando eu tive que ir sozinha por não poder entrar no filme que eu realmente queria ver haha.

Hoje, depois de aproximadamente 7 anos sem fazer isso, decidi me aventurar. O filme escolhido foi “Pelos olhos de Maisie” pela simples justificativa de que era uma sessão popular com ingresso à 5 reais (atualmente a meia entrada passa longe desse valor).

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Imagem: Google

O filme conta, sob a ótica da filha, a história de um casal que está se separando. A mãe, interpretada por Julianne Moore, é rockstar e estereótipo do que é errado (bebe, fuma, se droga) e o pai, Steve Coogan, é workaholic e não consegue criar laços afetivos e dar valor à família. O longa é bem realista mostrando a menina de um lado para o outro, cada hora com uma pessoa diferente cuidando dela, vendo todas as discussões e problemas e internalizando tudo o que vê e entende.

Seria um filme legal, não fosse o roteiro repetitivo que se estende por todo o longa. É um filme ok, a ideia é boa, mas a execução deixou a desejar.

Já sob a minha ótica do meu próprio dia: foi gostoso. Não me preocupei com nada, não me senti sozinha, conheci um cinema diferente, vi um filme que não veria habitualmente e me senti bem comigo mesma. É aquela coisa de ser (muito) feliz com alguém, mas não precisar de alguém pra ser feliz, não depender de ninguém pra poder aproveitar. Companhia é ótimo, mas ter seu tempo de vez em quando é tão bom quanto. E não vejo a hora de apresentar esse novo lugar pro meu namorado.

A única parte ruim do dia foi estar com pouco dinheiro e não poder comer algo depois do filme hahaha. Assim que arrumar um novo trabalho pretendo bater o recorde do ano passado de idas ao cinema e, dessa vez, não só com blockbusters 😉

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transgredindo hehe

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Distância

O crescente sufocamento da proximidade que é intangível.

Você está perto, mas colocamos entre nós quilômetros de distância entre um quarto e outro.

Eu só queria te chamar pra ir ao cinema comigo, e essa vontade gera uma reação em cadeia de sentimentos que culmina em gotas salgadas transbordando dos olhos.

Achava uma balela quando você dizia que não fazia porque não sabia ser, até perceber que eu também não sei. Tenho me descoberto diariamente e, consequentemente, te descoberto em mim.

Nós não temos problemas um com o outro, então por quê tanto desconcertamento com um convite de um programa banal?

Sempre esperei magicamente que um dia essa frieza (não intencional) fosse sumir e você acordaria diferente, só que quem acordou mudada fui eu. Já não aguardo mais a tua iniciativa, mas a minha coragem p’ra fazer o que você não fez e que talvez espere que aconteça tanto quanto eu.

Açúcar ou adoçante?

Eu nunca idealizei o príncipe encantado.

Não sou o tipo de menina que vai se encantar com os filmes de comédia romântica e cujos olhos vão marejar de lágrimas com os clichês sobre o amor.

Sempre gostei de meninos que nunca me olhavam e achava que ia virar tia, já que na escola todas as meninas da minha classe conseguiam arrumar namorado, embora a beleza não lhes fosse um atributo (e também não era meu), mas elas tinham alguma coisa que alguém percebia nelas e ninguém via em mim. A verdade é que eu não olhava pra quem me enxergava. Eu não tinha imaginado um príncipe, mas eu tinha imaginado um menino com atributos que eu achava que eu iria querer em alguém e turvava minha vista para quem não fosse assim.

A grande verdade é que quando eu arrumei um namorado (contrariando as expectativas de que eu fosse lésbica, por andar igual a um menino) ele não era o que eu tinha imaginado, da cor do cabelo, modo de se vestir até o gosto musical era tudo contrário ao que tinha imaginado… e que grata surpresa!

Ainda bem que eu não conheci alguém que só gosta das mesmas coisas que eu gosto de ouvir, de assistir, de ler. Ainda bem que ele pensa diferente de mim na maioria dos assuntos. Imagina que chato ter alguém ao seu lado que não te faz crescer?!

Com ele eu não aprendi somente sobre o velho clichê do quê é amar; eu venho constantemente aprendendo a respeitar as divergências, a gostar de coisas que eu costumeiramente iria ignorar, aprendi a (literalmente) experimentar.

Quão sem graça seria se não houvesse cara torta pra uma música que ele adora por no repeat e o filme do qual ele não entende o motivo de eu gostar? Quão sem graça seria se não tivéssemos ideias diferentes para debater, e passarmos a olhar outro viés, de repente até a ser mais justos com coisas das quais amamos odiar? E quão ruim seria se ele não apontasse meus erros pra que eu possa melhorar, caso ele tivesse os mesmos erros que os meus?

O gostoso do amor é o aprendizado, é mais do que ter coisas em comuns, descobrir o diferente. É sentir saudade daquela música que você odeia, mas que te traz um sentimento bom por trazer à cabeça a imagem dele dançando a melodia só pra te provocar risos; é ficar imensamente feliz por ele ter tomado gosto por algo que você sempre amou como a fotografia ou os livros, e você começar a considerar ET’s, o que pode ser uma coisa boba pra alguns, mas que pra ele é de toda importância.

Ainda bem que Deus não ouviu minhas preces e não mandou a pessoa que eu achava que queria. A gente vive achando que sabe o que quer, mas querendo tanto algo, ignoramos o que de fato a gente precisa.

Sobre ser um “Zé Ninguém”

Aqui e acolá alguém é chamado de Zé Ninguém.
Não tem raça, gênero ou idade para tal classificação, embora tenha suas maiorias.

Um Zé Ninguém geralmente é o porteiro do prédio, a moça da limpeza, o cara da manutenção, a atendente da loja; é quem trabalha sábados e domingos, ganha um salário mínimo. Não falta ao trabalho, nem falta com o bom humor, mas não tem direito à um aumento que permita pagar convênio ou escola particular para os filhos, não possibilita um bate e volta na praia no fim de semana sem que isso comprometa as refeições durante o mês.

É aquele pra quem quase ninguém deseja bom dia, que sai de casa as 04 da manhã rumo ao desaforo diário, alguém que suja as mãos no lugar de quem tem privilégio. É quem paga mais imposto e tem os direitos renegados, quem fica na fila do SUS e mora onde o asfalto não chega, tampouco o saneamento básico.

É o marginal, porque realmente está à margem do que deveria ser a sociedade. É o excluso, o recluso e o verdadeiro herói.